A língua está sempre em evolução, o que faz com que surjam várias formas de dizer a mesma coisa e inúmeras variantes. Abordarei, o tema “Variação Linguística”, usando como exemplo de variante o dialeto do segmento hip hop.
Existe no Brasil uma falsa idéia de unidade lingüística, como se ela fosse comum a todos os milhares de brasileiros. Marcos Bagno enfatiza em seu livro “Preconceito Lingüístico” que isso não corresponde à realidade.
“A verdade é que no Brasil, embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português, esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade”. (pág.16).
Essas variabilidades se manifestam de diversas formas, dependendo do local em que o falante vive, sua idade, posição social e rede de relacionamentos, dividindo-se em prestigiadas e estigmatizadas. A primeira é geralmente utilizada por pessoas letradas e/ou de nível socioeconômico maior. A segunda é utilizada por pessoas sem muita instrução escolar e, geralmente, pobres. As variantes estigmatizadas, na maioria das vezes, são consideradas erradas e ignoradas por professores e acadêmicos. Isso é um erro, pois como diz Luft em seu livro “Língua e Liberdade”, o importante é conseguir se comunicar através da língua, e não seguir regras. Todos dominamos nossa língua materna, e o preconceito contra as variantes estigmatizadas é, também, um preconceito contra quem emprega essas variantes.
Neste contexto, usarei o hip hop como exemplo de variante estigmatizada. O hip hop surgiu na década de 60, nos EUA, como uma forma de reação aos conflitos sociais e à violência sofrida pelas classes menos favorecidas da sociedade urbana norte-americana, abrangendo várias representações culturais, como a música (rap), dança de rua (break) e arte urbana (graffite).
Aqui nos restringiremos à fala. No Brasil, foi adotada principalmente pelos jovens negros e pobres das periferias, com pouco acesso à instrução formal. Em relação a este fator, podemos observar que a baixa escolaridade condiciona muito os aspectos linguísticos que envolvem o movimento, como, por exemplo, falar “nóis” ao invés de “nós”, “baguio” ao invés de “bagulho”, “cumpadi” ao invés de compadre, entre outras mudanças fonéticas e fonológicas. Como os valores linguísticos são passados pela família, as pessoas acabam reproduzindo-os sem se dar conta, realidade enunciada por Bourdieu:
“(…) cada família transmite aos seus filhos, mais por vias indiretas, certo capital cultural, (…) um sistema de valores implícitos (…) que contribui para definir, as atitudes face ao capital cultural (…)” (pág. 325-326).
Um ponto importante no linguajar do hip hop, é que as variantes já estão consolidadas e seus códigos são compreendidos por todos na comunidade falante, conforme afirma Couto, “a língua de uma comunidade é a língua usada por esta comunidade” (pág.9) e completando: “A língua de uma comunidade é um código que serve para o envio e recepção de informações entre seus membros.” (pág. 88).
Essa afirmativa nos demonstra que as variantes lingüísticas possuem competência comunicativa inerente ao ser humano, e o hip hop contempla, sobretudo, os que não compreendem a norma culta padrão, utilizada nos principais meios de comunicação e com a qual não se identificam, como afirma Bagno “(…) os falantes de variedades desprestigiadas deixam de usufruir diversos serviços (…) por não compreenderem a linguagem empregada pelos órgãos públicos”. (pág. 17).
Entendemos, assim, que a linguagem do hip hop está correta de acordo com o público ao qual está sendo direcionado o discurso, o público periférico e sem instrução. Há um abismo enorme no que diz respeito à suposta variedade culta que nos é imposta e a variedade que os brasileiros efetivamente empregam, incluindo o hip hop. Na música “Nego Drama”, dos Racionais Mc’s há o trecho:
“Inacreditável, mas seu filho me imita/ No meio de vocês/ Ele é o mais esperto/ Ginga e fala gíria / Gíria não, dialeto”. A música expõe uma segregação lingüística voluntária, pois o hip hop, ao criar um dialeto com expressões como “zica”, “ta ligado”, “ta de toca”, “pipoco”, “rolé”, “loky”, típicas desse segmento, obviamente não são compreendidas por todos, o que nos mostra que a fala também serve de barreira para quem está de fora tornando-se um meio de ação e resistência contra a sociedade.
Concluímos então, que a variação linguística é um fato bastante comum, o que falta, é o reconhecimento dessas variedades. Sobre isso, Zilles nos diz que precisamos reconhecer as variedades (o que exercitará a cidadania), e entender que o que o falante necessita é compreender e ser compreendido, pois o não reconhecimento das variações implica em um cidadão desvalorizado e incapaz de sentir-se pertencente em seu meio. Isso não exclui a necessidade de oportunizar aos usuários das variações lingüísticas o acesso ao aprendizado para que eles possam dominar a norma padrão da língua, facilitando sua inserção na sociedade.
Sobre o tema abordado, uma citação de Couto: “(…) o importante no reconhecimento dessas diversas normas é de que cada uma delas é válida no contexto e no ambiente em que surgiu”. (pág.84).
Por
Kelly Araújo*
*Ensaio apresentado por mim na cadeira obrigatória de Conceitos Básicos de Linguística, adaptado para este blog.